Catarina. Entrou feita luz com a irmã, uns anos mais nova, por detrás de alguém com quem falava. E de vulto, passou a realidade. Recuou. Olhou-me nos olhos. "Posso ir ver a minha avó? Eu sei que provavelmente não tenho idade para entrar, mas posso só vê-la através do vidro?".

Foi exactamente assim. Para entrar, teria que lhe perguntar se tinha algum documento de identificação, qual era o nome dela, e dizer-lhe que, naquele Lar, a saída dos visitantes tinha que ser até às seis da tarde. E isso disse-lhe. Dei-lhe um cartão. "Vai".

Regressou cinco minutos depois, com a avó pelos dedos, com os olhos submersos em lágrimas, uma avó perdida de a ver e de a deixar assim, ela com a irmã pelo braço, pelo corpo todo, arrastada para fora daquele sítio de ver a dor nela própria por a avó nem a ter reconhecido. Entregou-me o cartão como quem diz obrigado. "Para a próxima, não me digas que não tens idade. Pedes-me o cartão, dizes-me que vais visitar a tua avó e entras. Só tens que ser honesta, assim como foste."

Agravei-lhe a dor. Não pude evitar as lágrimas. Sei que ela também porque não consegue chorar duas vezes ao mesmo tempo. Com doze ou treze anos, ninguém consegue chorar duas vezes ao mesmo tempo.

Quero pensar que terei mudado a vida da Catarina. Onde estarão os pais da Catarina? Quero muito. Só assim consigo mudar a minha.
Na faculdade, fascinavam-me duas coisas: o aparente mistério que o perfil dos professores trazia consigo e aquilo que, a determinada altura, julguei ser o fundamento único das coisas que nos ensinavam.

Os professores eram gente de perfil. Não no sentido normal do termo mas, antes pelo contrário, pelo facto, que me parecia inequívoco, de que apenas se mostravam de perfil. A faculdade tinha - e ainda tem - uma porta principal que lembrava o portão de saída dos touros para a arena. E os professores, que pareciam ter interiorizado e assumido esta imagem, portavam-se como touros: entravam na faculdade com uma postura agressiva, rígida, mas, por outro lado, não o faziam como os touros, que entram na arena de peito aberto, bravos, como que a demonstrar vontade de a dominar pelo lado de fora. Os professores entravam na faculdade de lado, de forma esguia, abreviada, como se, em primeiro lugar, se fizessem anunciar pela sua sombra, pelo seu lado mal dormido, sombrio, nocturno. Eram raros os dias, aliás, que não perguntava aos meus colegas (ou às minhas colegas, sempre melhor informadas) se o Ferro ou o Campos não teriam dado à costa, na esperança de que faltassem e pudesse apanhar o comboio das 17.30h para casa, em vez de o das 19h, que, normalmente, perdia.

Por outro lado, ao terceiro ano de curso, a fenomenologia parecia-me ser a mãe de todos os fundamentos das coisas, a razão pela qual tudo existiria e continuaria a existir. Em termos simples, a fenomenologia instigava-me à ideia de que todos os fenónemos, todas as coisas, tudo aquilo que acontece nunca se mostrava. Nunca as coisas se mostravam na sua totalidade porque os olhos com que as focamos focam apenas um dos seus lados. Imaginava todas as coisas a girarem à minha volta transformadas em diamantes lapidados, com lados brilhantes, parados, voltados para mim com a intensidade luminosa de holofotes e ocultando todos os outros lados que sabia terem mas que não conseguia ver.

E isto acontecia-me sem ter fumado nada, o que torna a minha visão desse acontecimento, passados alguns anos, muito mais clara que o normal.

Hoje, imagino que os professores que passavam aqueles portões os atravessavam de lado como que figurando essa ideia, que parecia ser apenas a minha. Os meus colegas não levavam nada daquilo a sério, e olhavam para as teorias como teorias. Como ideias que, um dia, deixariam de ter importância.

Tinham razão. Por estes dias, quando acordo, passados alguns anos sob o jugo daquela forma de vida, sinto que, com o tempo, as coisas atravessaram (ou vieram atravessando) o meu olhar e se entregaram à minha visão sem que me tivesse apercebido imediatamente disso. As coisas passaram a ser mais benévolas com a minha condição, com a minha ambliopia. Não se irritam, não se atiram ao meu olhar como focos de luz incandescentes, com a intenção de me cegar.

Continuo sem as ver, mas percebo-as. Sei que existem. Sei que estão, que são, que vivem atrás de mim e que dependem do meu movimento para serem próximas da sua plenitude, mas eu não as procuro pelo seu recheio integral. Procuro-as, sim, pela sua simplicidade, do mesmo modo que procuraria a utilidade de um artefacto primitvo, partido e desmembrado pelo tempo, se dele precisasse.

Foi a noção da necessidade e não a preocupação em ser virtuoso e encontrar o mistério que pernoita nas coisas que me fez encontrá-las. As coisas, afinal, não são as coisas por terem lados, mais lados do que aqueles que delas sabemos, que delas sabemos mas não vemos. Ver, afinal, não é entender. Ver é perceber as coisas sem as interrogar, é deixar que as coisas descansem sem as acordar, é olhar para elas pelo flanco que se querem mostrar e que, digo eu, deve ser o melhor lado das coisas. As coisas têm uma vida interior, mesmo que não encontremos moléculas de vida nas coisas.

Haverá necessidade de atravessar com o olhar o palhaço de barro ao mármore daquela janela? Sei que está ali, que serve o interesse de quem o fez, mesmo que não sirva o interesse da razão toda.
Interrogo-me sobre a possibilidade de existir um método que torne possível livrarmo-nos das preocupações. Esta interrogação - que ponho a mim mesmo, dado que a minha maior preocupação é saber como me livrar das preocupações - é baseada na ideia (provavelmente, certa) de que as preocupações acontecem em nós algum tempo antes de acontecerem em nós os problemas.

Uma preocupação não deveria ser um problema. É limitativa. Sufocante. Pressupõe o acontecimento de algo mau antes mesmo desse acontecimento, por assim dizer, acontecer. Entendo que a formatação genética humana tenha contemplado o surgimento repentino das preocupações como forma de prevenção. É como uma dor - previne o aparecimento de algo pior que a própria dor.

Mas há um erro, segundo percebo, na introdução do sistema de preocupações na formatação do humano. A preocupação, ao sugerir o aparecimento de um problema, sugere-o, normalmente, de uma forma demasiado incisiva. Logo, a preocupação torna-se no problema.

Penso que a única forma de resolver este problema é diminuir a carga de emotividade que é atribuída à preocupação. E deve, penso, existir uma forma, um método de o fazer. Como primeira resposta a este problema das preocupações, imagino que surjam vozes a apontar para o Oriente. Eu respeito o Oriente, os Orientais e isso tudo, mas não me parece que, para uma pessoa que anda com problemas por estar preocupada, a meditação ou um conjunto de agulhas espetadas atrás da orelha possam ser uma virtude. Partir pratos ou conduzir uma retroescavadora poderão, talvez, resultar num alívio dos sintomas, mas, mesmo assim, imagino que não nos salvem do temor de acontecer o que achamos que não deveria acontecer.

Estar previamente ocupado (preocupado) ocupa espaço em nós, torna-nos pesados e retira-nos força para resolver o problema, caso o problema aconteça. Se houvesse uma estatística das preocupações que, por acaso, se transformaram em problemas, calculo que a taxa de preocupações concretizadas seria baixa. Cerca de 8%. Talvez menos. Não sei. É um alerta, um farol, mas um farol com uma luz demasiado forte, que nos cega, como quando, ao conduzir, vemos um carro ao longe com os máximos ligados e ficamos, por segundos, à espera do pior.

Sugiro, pois -embora não saiba a quem devo dirigir esta sugestão - que as preocupações sejam menos ocupantes e que, já agora, surjam temporalmente mais próximas dos problemas. É preferível morrer de ataque cardíaco com um susto do que com ataques sucessivos de ansiedade, que gerarão, mais tarde, o tal ataque cardíaco que a formatação humana parecia querer evitar.

Poderão ainda dizer: sim, certo, mas há humanos e humanos, e há humanos que não estão embutidos com uma carga de emotividade tão grande que consiga transformar preocupações em problemas. No entanto, isto soa-me mal. Não acredito. E preocupa-me pensar que hajam pessoas que pensem assim. Além disso, a carga brutal de tomas de ansiolíticos e antidepressivos de alguns humanos prova exactamente o contrário. Estão preocupados. Estão com problemas.
São tempos difíceis, dizes. Tens medo que te interpretem mal, que achem que dizes que são tempos difíceis porque vão pensar que o tempo a que te referes não é o teu, é o das notícias, dos devaneios financeiros,da europa, das traves que seguram que o mundo e que, já o percebemos, são fracas para sustentar o seu peso.

Mas o peso do teu mundo não é o peso do mundo, do mundo todo, do mundo que escorre para lá do peso do teu mundo.

Eles não sabem que as notícias do teu mundo não passam nos telejornais, que o peso do teu mundo é muito superior ao peso do peso das notícias sobre o banco central europeu.

Tu não dizes que os tempos difíceis que atravessas são o tempo do teu tempo interior, das filas de trânsito, dos aborrecimentos, da inquietação no trabalho que tudo fazes por suportar, da travessia que fazes quando passas pelo meio das brasas e as horas, as que passam e as que não passam, são o teu único contentamento. Mesmo que o digas, ninguém o saberá, porque quem sabe de ti tem o seu próprio peso, incontável, imensurável, indizível.

O mistério do mundo é o teu mistério, o que de ti sabes e não pode ser contado, mesmo por ti, mesmo para ti.

Ninguém perceberia se dissesses que são tempos difíceis, que és tu em tempos difíceis, porque serias confundido com o mundo, que tem muito mais para contar que a explicação do teu caminho. E é por isso que nunca dirás que atravessas tempos difíceis, que o teu dizer é de uma língua estranha que passa ao largo da realidade, que é aborvida pelos tempo presente ou que, espreitando para fora da tua boca, apenas se mostrará envolta na realidade social das oito da noite.

Já não és tu, quando pesas mais que o próprio mundo. Já não és tu porque és os outros, a parte de um todo que se diz, que se espalha, que se entranha no lodo, que se esvai e se fica nas notícias, nos avisos, na percepção de um fim.
Quanto mais vivo, mais sei que o que ouvia quando era pequeno e me era dito como se de uma verdade absoluta se tratasse era, de facto, uma verdade absoluta.

A minha adolescência foi uma época de retrocessos. Não me disse nada de profundo, de definitivo, de constante. Fiquei a perceber que cada corpo é um corpo diferente, que o meu metabolismo do alcóol não é o mesmo do Nuno, e que as mulheres, regra geral, vieram ao mundo para nos desviarem do rumo que sabíamos ser o certo quando frequentávamos a quarta classe e que, depois da faculdade, retomámos, se ainda nos foi dada essa possibilidade.

Dizia Platão que todo o conhecimento é um reconhecimento. Nada mais certo. E eu sabia disto, sobretudo com oito anos e sem nunca ter ouvido falar de Platão. Platão estava nas coisas, nas certezas do meu Avô, no olhar analítico da minha Mãe, no temor fraternal da minha Avé, que Deus terás tido todo o prazer em ter recebido.

E hoje ainda o sei, mas é como se o não soubesse. É como se me faltasse uma voz de verdade que, em mim, reconheça e oficialize a própria verdade e as pontas da sua saia rodada.

Não percebo porque nascemos, mas é evidente que a decisão que alguém toma por nós de nascermos se baseia na inevitabilidade de aprendermos de novo o que já sabíamos ainda antes de nascermos. Os nossos pais não sabem disso, os nossos avós também não, mas há alguém que sabe por eles.



É uma redundância, mas as boas verdades são, normalmente, desenterradas nos territórios mais batidos: nunca estive à espera que a morte lhe batesse à porta. ele também não. sabia-se imortal, mas foi quando acedeu ao nosso pedido para ir ao hospital que pressentiu o fim da sua presunção de imortalidade. a verdade, então, foi esta, a desenterrada, a verdade: que trabalhamos anos a fio a par com a vida e a vida deixa-nos, mesmo que o nosso trabalho por ela fora, arrando a terra e sulcando o lodo depositado nas suas margens, não esteja terminado. A vida deixa-nos, larga-se de nós, seca-nos, enterra-nos, livra-nos de si.

Alguém fará a vida que faremos, alguém, depois, fará da vida o que fomos fazendo dela. A vida não depende de nós e nós dependemos, se queremos saber da vida inteira, do que vamos vivendo. Mas nunca viste a vida. Não vimos a vida, tu nunca viste a vida porque não precisaste.

Hoje, acabou. Fim. Um fim imposto, decisivo, contraditório. Um fim para lá do caminho, um fim que não vingou o fim do caminho, um fim que resvalou para fora do trilho do caminho.

Mas ficam, as coisas. o arado. a terra batida, mexida, ansiosa. o boneco pintado de jogador de futebol, aparentemente escondido atrás do muro. o muro. o sol, as tainhas, a subtileza, o olhar, a presunção assumida de uma inocência fingida desde puto. as coisas que faltam, onde as puseste, as coisas que faltam mas não estás, é preciso limpar... é preciso que saias mas estás nas coisas. ficaste. ninguém te ouve. a puta da tua voz, que não estás.

agora não és connosco. somos nós connosco. a dor que tiveste é a nossa dor. não sabemos se ainda te dói mas sabemos que nos dóis. há um espaço, um lugar vago, um deserto de luz entre a tua sombra e as nossas mãos.

e há dois segredos que partilho com quem ficou aqui. um, na verdade, porque o segundo ficou entre mim e ti e as ondas. coisas íntimas. salvaste uma taínha bebé. e Salvaste um caranguejo de uma espécie rara que eu disse poder ser muito grande quando crescesse. talvez soubesses que não. sentiu-se o orgulho. ou talvez soubesses que era apenas um caranguejo, que continuaria a ser um caranguejo, que a única pretensa vantagem que teria, que terias sobre aquele caranguejo era não sabermos, como ele, o seu nome.
Tenho otites um número incalculável de vezes por ano. Ou por década, dado ser já uma condição da minha espécie particular. Sabe quem as teve o incomódo que são - desde a recorrente vontade de entulhar paus, explosivos e outros objectos no interior do ouvido até à necessidade de bater com a cabeça na parede para que a dor, enfim, se esconda noutras partes do corpo e nos provoque um derrame cerebral, vale tudo. Tudo.

No entanto, e dada a minha vasta experiência em otites (aliada à vontade nula de me dirigir ao médico, por não acreditar em médicos nem na medicina profissional), este mal do corpo tem-me feito pensar que, em muitos casos, as otites são extremamente úteis quando aliadas a uma certa surdez, facto normalmente associado ao aparecimento da maioria das espécies de otites.

A pior otite é - pelo menos, quanto a mim - a purulenta: dói que se farta, expele pus em forma de farpelas esbranquiçadas (apenas comparáveis a uma espécie de minhoca usada na pesca, o coreano, mas recém-nascida, de modo a que nenhum peixe se interesse por ela), atravessa o corpo e a alma em impulsos de dor comparáveis a choques eléctricos e, como se não bastasse, permite ouvir quem não que queremos ouvir e saber do que não queremos saber, mesmo que com limitações.