Da escrita possível, não há forma de descrever a perda de alguém. Que te morra, que te desapareça ou que deixe de querer saber de ti: não conseguirás descrever o que perdes por quem tu perdes, mesmo que quem percas seja já um pouco de ti, um pedaço do teu corpo que, uma vez solto, te causou uma folga, um espaço, um vazio. Uma dobra. Uma forma de ar.

É uma dor física, orgânica, sensorial. Uma falha mecânica da pele.

Não é uma dor que se diga, que se escreva, sequer que se fale, que se abocanhe. Está na palma das tuas mãos, e tocar-lhe é fazer a dor doer da dor que é.

Antigamente, fazia-se a purga quando estavas doente. Imagino que as dores que sentias quando eras purgado te fizessem esquecer outras dores maiores. Primeiro, está o corpo, porque, antes de te doer o que for, dói o corpo. A alma, dentro do corpo, espicaça-o, e, crescendo com a dor que sente, tenta libertar-se do sítio que a prende, mas de que depende para doer. Empurra-te. É em ti de dentro para fora. A tua dor quer continuar em ti mas finge que quer sair, empurrando-te para fora. Precisas de voltar a ti, mas a recordação de quem eras antes de que te doesse o corpo cola o teu corpo, por dentro, à dor.

A dor é o fim. Ficas na dor, sentas-te nela. Mas o peso do teu corpo sobre a dor gasta-o, rompe-o, queima-o. Não há nada que doa mais que a dor porque a dor não tem um sentido, um caminho. Quando perdes alguém, não te dói para cima, para o lado, para baixo. A tua dor não te visita porque vive contigo. A tua dor não sai porque não sabes por onde entrou. Terá crescido em ti, estado contigo, e acordado. A tua dor é uma forma de existência simétrica, que, atrás de ti, te segue para todo o lado e copia o mais ancestral dos movimentos - a dor imita-te, aprende a crescer e a ser maior que tu seguindo o traço do teu corpo, roçando a sua escama pelos contornos mais íntimos, secretos, genitais do teu corpo.

Dor que te conhece, que não te pede, que tem a tua chave.

Dói-te a dor porque faz de ti uma continuação de si própria, crescendo na aridez, na penúria, no lamento dos teus passos, na vida que perdeste quando perdeste quem deixaste de ter em ti, contigo, quem eras, simultaneamente, tu e tu.


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