É impressionante - no verdadeiro sentido da palavra, daquilo que impressiona, que se interioriza, que se incorpora - a forma como, actualmente, nos tratamos, na sociedade que melhor penso conhecer e que é esta, a portuguesa.

Da crise financeira à crise de valores, olhamos para o outro como o nosso inimigo, com uma variante muito nova e especial: o nosso principal inimigo é aquele que encontramos primeiro, do vizinho que se cruza connosco, de manhã, no elevador à última pessoa que encontramos na rua, muito ao longe, quando, de noite, vamos à janela despedir-nos do último cigarro.

A nossa estratégia de sobrevivência - uma experiência recente, que contraria a nossa racionalidade social e individualidade - obriga-nos a fitar o nosso semelhante esperando, fria e firmemente, que morra. A morte que queremos no outro é o preenchimento - irracional - da nossa existência: uma vaga de um emprego que se perdeu, uma possibilidade remota de um lugar a mais no autocarro, uma vaga possível na creche do filho do morto ou da morta (entretanto órfão e entregue à segurança social), uma vaga impossível na fila de trânsito, uma hipotética vaga na praia, com mais um lugar para estender a toalha e espaço suficiente para abrir os braços e mergulhar. Uma vaga aqui, ali, acolá. A vaga que temos na alma é parcialmente ocupada pela ocupação de uma vaga em qualquer coisa que esteja, efectivamente, ocupada. E para que hajam vagas, esperamos que os outros morram, porque, mais que nunca, o inferno são mesmo e só mesmo os outros.

Falava, há dias, com um amigo sobre estas coisas. Dizia-me o Gonçalo, com uma bola de guardanapo entre os dedos e um sorriso amargurado, que há vários fogos acesos em vários cafés como aquele onde estávamos mas ninguém que os ateie. É que, em Portugal, as pessoas são muito optimistas, acreditam que a sua salvação pessoal é feita à custa da desgraça alheia e, por isso, toda a sua dedicação e entrega à vida são canalizadas para a provocação do mal no outro. A desvida dos outros é aquilo que nos faz achar que continuaremos vivos.

O que seria, por exemplo, das minhas contas se não houvesse ninguém que as cobrasse? O que seria do desemprego se houvesse apenas um cargo a ocupar, e esse cargo fosse ocupado por mim? A felicidade mora no desaparecimento do outro, no desaparecimento físico e real do outro, ou aos olhos de um santo, na sua emigração.

Hoje, já não escolhemos as nossas vítimas. As nossas vítimas são quem se apresenta aos nossos olhos, são as primeiras pessoas que se desvelam ao nosso olhar. Uma águia, quando sobrevoa um campo, não escolhe a sua presa, especialmente se estiver com fome - a sua presa é a primeira presa que aparecer à sua visão de rapina.

Assim somos. Sem futuro social.

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