É uma redundância, mas as boas verdades são, normalmente, desenterradas nos territórios mais batidos: nunca estive à espera que a morte lhe batesse à porta. ele também não. sabia-se imortal, mas foi quando acedeu ao nosso pedido para ir ao hospital que pressentiu o fim da sua presunção de imortalidade. a verdade, então, foi esta, a desenterrada, a verdade: que trabalhamos anos a fio a par com a vida e a vida deixa-nos, mesmo que o nosso trabalho por ela fora, arrando a terra e sulcando o lodo depositado nas suas margens, não esteja terminado. A vida deixa-nos, larga-se de nós, seca-nos, enterra-nos, livra-nos de si.

Alguém fará a vida que faremos, alguém, depois, fará da vida o que fomos fazendo dela. A vida não depende de nós e nós dependemos, se queremos saber da vida inteira, do que vamos vivendo. Mas nunca viste a vida. Não vimos a vida, tu nunca viste a vida porque não precisaste.

Hoje, acabou. Fim. Um fim imposto, decisivo, contraditório. Um fim para lá do caminho, um fim que não vingou o fim do caminho, um fim que resvalou para fora do trilho do caminho.

Mas ficam, as coisas. o arado. a terra batida, mexida, ansiosa. o boneco pintado de jogador de futebol, aparentemente escondido atrás do muro. o muro. o sol, as tainhas, a subtileza, o olhar, a presunção assumida de uma inocência fingida desde puto. as coisas que faltam, onde as puseste, as coisas que faltam mas não estás, é preciso limpar... é preciso que saias mas estás nas coisas. ficaste. ninguém te ouve. a puta da tua voz, que não estás.

agora não és connosco. somos nós connosco. a dor que tiveste é a nossa dor. não sabemos se ainda te dói mas sabemos que nos dóis. há um espaço, um lugar vago, um deserto de luz entre a tua sombra e as nossas mãos.

e há dois segredos que partilho com quem ficou aqui. um, na verdade, porque o segundo ficou entre mim e ti e as ondas. coisas íntimas. salvaste uma taínha bebé. e Salvaste um caranguejo de uma espécie rara que eu disse poder ser muito grande quando crescesse. talvez soubesses que não. sentiu-se o orgulho. ou talvez soubesses que era apenas um caranguejo, que continuaria a ser um caranguejo, que a única pretensa vantagem que teria, que terias sobre aquele caranguejo era não sabermos, como ele, o seu nome.

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