Na faculdade, fascinavam-me duas coisas: o aparente mistério que o perfil dos professores trazia consigo e aquilo que, a determinada altura, julguei ser o fundamento único das coisas que nos ensinavam.

Os professores eram gente de perfil. Não no sentido normal do termo mas, antes pelo contrário, pelo facto, que me parecia inequívoco, de que apenas se mostravam de perfil. A faculdade tinha - e ainda tem - uma porta principal que lembrava o portão de saída dos touros para a arena. E os professores, que pareciam ter interiorizado e assumido esta imagem, portavam-se como touros: entravam na faculdade com uma postura agressiva, rígida, mas, por outro lado, não o faziam como os touros, que entram na arena de peito aberto, bravos, como que a demonstrar vontade de a dominar pelo lado de fora. Os professores entravam na faculdade de lado, de forma esguia, abreviada, como se, em primeiro lugar, se fizessem anunciar pela sua sombra, pelo seu lado mal dormido, sombrio, nocturno. Eram raros os dias, aliás, que não perguntava aos meus colegas (ou às minhas colegas, sempre melhor informadas) se o Ferro ou o Campos não teriam dado à costa, na esperança de que faltassem e pudesse apanhar o comboio das 17.30h para casa, em vez de o das 19h, que, normalmente, perdia.

Por outro lado, ao terceiro ano de curso, a fenomenologia parecia-me ser a mãe de todos os fundamentos das coisas, a razão pela qual tudo existiria e continuaria a existir. Em termos simples, a fenomenologia instigava-me à ideia de que todos os fenónemos, todas as coisas, tudo aquilo que acontece nunca se mostrava. Nunca as coisas se mostravam na sua totalidade porque os olhos com que as focamos focam apenas um dos seus lados. Imaginava todas as coisas a girarem à minha volta transformadas em diamantes lapidados, com lados brilhantes, parados, voltados para mim com a intensidade luminosa de holofotes e ocultando todos os outros lados que sabia terem mas que não conseguia ver.

E isto acontecia-me sem ter fumado nada, o que torna a minha visão desse acontecimento, passados alguns anos, muito mais clara que o normal.

Hoje, imagino que os professores que passavam aqueles portões os atravessavam de lado como que figurando essa ideia, que parecia ser apenas a minha. Os meus colegas não levavam nada daquilo a sério, e olhavam para as teorias como teorias. Como ideias que, um dia, deixariam de ter importância.

Tinham razão. Por estes dias, quando acordo, passados alguns anos sob o jugo daquela forma de vida, sinto que, com o tempo, as coisas atravessaram (ou vieram atravessando) o meu olhar e se entregaram à minha visão sem que me tivesse apercebido imediatamente disso. As coisas passaram a ser mais benévolas com a minha condição, com a minha ambliopia. Não se irritam, não se atiram ao meu olhar como focos de luz incandescentes, com a intenção de me cegar.

Continuo sem as ver, mas percebo-as. Sei que existem. Sei que estão, que são, que vivem atrás de mim e que dependem do meu movimento para serem próximas da sua plenitude, mas eu não as procuro pelo seu recheio integral. Procuro-as, sim, pela sua simplicidade, do mesmo modo que procuraria a utilidade de um artefacto primitvo, partido e desmembrado pelo tempo, se dele precisasse.

Foi a noção da necessidade e não a preocupação em ser virtuoso e encontrar o mistério que pernoita nas coisas que me fez encontrá-las. As coisas, afinal, não são as coisas por terem lados, mais lados do que aqueles que delas sabemos, que delas sabemos mas não vemos. Ver, afinal, não é entender. Ver é perceber as coisas sem as interrogar, é deixar que as coisas descansem sem as acordar, é olhar para elas pelo flanco que se querem mostrar e que, digo eu, deve ser o melhor lado das coisas. As coisas têm uma vida interior, mesmo que não encontremos moléculas de vida nas coisas.

Haverá necessidade de atravessar com o olhar o palhaço de barro ao mármore daquela janela? Sei que está ali, que serve o interesse de quem o fez, mesmo que não sirva o interesse da razão toda.

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